quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

D. João Miranda equivocou-se: usou um exemplo do "NÃO" *

Um dignitário da Igreja do Porto comparou a defesa do “sim” à despenalização do aborto com os expostos medievais nos mosteiros. Ora, enganou-se, isso é o que defendem os adeptos do “NÃO”. Estes é que lutam para as mulheres porem no mundo filhos que rejeitam e depois que os mandem para instituições. Ora, só mudou o nome – antigamente abandonavam-se na roda de mosteiros, agora abandonam-se em instituições ou outros sítios. Na primeira página do “Sol” de 23 de Dez., lê-se: “crianças esquecidas em hospitais”.

Mas D. João Miranda teve de recorrer a um exemplo do “Não” porque não encontrou na Bíblia nem na História da Igreja um exemplo que defenda a vida uterina. Na Itália medieval, um édito do rei Rotari condenava aquele que “espancar uma mulher até fazê-la perder a criatura que, porventura, tenha nas entranhas”, a pagar a multa de três soldos. Mas o mesmo édito condenava a pagar seis soldos (o dobro) “quem cortasse o rabo a um cavalo”.

PARA DEUS, A MULHER ERA MAIS IMPORTANTE QUE O FETO

Mas o ilustre dignitário esqueceu a Bíblia. No Êxodo, XXI, v. 22, Deus ordenou a Moisés: «(quem) ferir uma mulher pejada, e for causa de que aborte, mas ficando ela com vida, será obrigado a ressarcir o dano, que pedir o marido e os árbitros julgarem». Portanto, o que incomoda neste referendo é a “decisão da mulher”. Isso é que é novo e fruto do avanço dos tempos, pois até fins do séc. XX (em Portugal até 1978) a dona do ventre não tinha direitos sobre os filhos que gerava.

Mas o mesmo livro Êxodo, vers. 23, acrescenta: “mas se seguiu a morte dela, dará vida por vida, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, pisadura por pisadura». Para Deus, a vida da mulher valia outra vida, o feto tinha apenas valor económico.

Por isso, cuidado, pois o “Não” ao proibir que a mulher com problemas recorra aos hospitais, faz com que ela aborte de qualquer maneira e pode daí advir a morte dela ou ficar mutilada “matando” a hipótese de gerar novas criaturas. Como a lei de Deus ordena que quem provoca a morte de uma mulher grávida dê vida por vida, estão os adeptos do “Não” dispostos a cumprir a lei de Deus?

DEUS FOI LEVIANO?
É sabido que o Criador colocou o ventre dentro duma mulher. Não me parece que o tenha feito levianamente. Quem são os adeptos do “Não” para se julgarem capazes de corrigir um acto de Deus? Que pretensão é essa de se considerarem mais iluminados do que aquelas que enfrentam a situação? Eu se votar “Não” impeço que uma mulher das Beiras ou alentejana aborte? Eu posso ter essa ilusão, mas não passarei duma tola, porque não tenho esse poder, esse controle. Por isso o “Não” não defende vida alguma, apenas cria um problema a uma estranha. E, ainda por cima, não tem consideração por ela, pois acha que é uma coitada, não sabe decidir, precisa que os “iluminados” decidam em seu nome, como se fosse criança, menor, a cargo deles.

NESTE REFERENDO, O ABORTO E VIDA NÃO ESTÃO EM QUESTÃO

Trata-se apenas de conservadorismo e progressismo. Quem agora vota “não” votaria assim se fosse outra coisa que implicasse alteração. Os conservadores são sempre pelo que está. Os progressistas lutam por mudanças. Por isso, até posso prever – o voto “sim” predominará no sul e o “não” no Norte. O Porto e arredores costumam funcionar como uma ilha, votando ao lado dos progressistas. Não falha. É assim desde a questão do Mestre de Avis, séc. XIV. A defesa da vida é um pretexto como seria outra coisa qualquer se a votação tivesse outro tema.

Neste caso, para mim, quem defende a vida são os adeptos do “sim”. Não é por acaso que quem defende a paz nas ruas esteja agora com o “sim”. E quem defende a guerra, o exército, as invasões, queira iludir o mundo votando “não”. Não existe vida só no ventre da mulher. Essa não se pode controlar, só a própria. Mas as outras vidas nós podemos. Onde estão os registos históricos de defesa da vida, quer nas guerras, nas inquisições, no holocausto, nos fascismos... por parte dos conservadores? Foram sempre os mais liberais que lutaram e se sacrificaram em defesa da vida e da liberdade.

E já que se falou nos “expostos”, também foram os progressistas que acabaram com eles. Antes, como se proibiam as mulheres de cantar nas igrejas, alguns eram capados para participarem em coros com voz feminina.

O QUE LUCROU O PAÍS COM A VITÓRIA DO “NÃO” EM 1998?

Após 1998, por acaso acabaram os abortos em Portugal? As idas a Espanha deixaram de se fazer? Diminuiram os casos de abortos mal feitos nas urgências dos hospitais? Não sei quantos casos são actualmente, mas, em 1998, a Ministra da Saúde informou que cerca de 10 000 casos de abortos mal feitos entravam por ano nos hospitais públicos. Ora, é com os nossos impostos que pagamos a assistência a esses milhares de casos. Portanto, quantas vidas foram poupadas com a vitória do Não? O que se poupou nos impostos?

Se uma mulher mete na cabeça que deseja abortar, fá-lo de qualquer maneira. Mas se ela for encaminhada para os hospitais, lá encontrará médicos e psicólogos que a poderão demover. Aproximar as mulheres dos médicos é meio caminho para acabar com o flagelo do aborto, pois tomarão conhecimento de métodos contraceptivos ou outras soluções. Portanto, que os adeptos do “sim” nunca admitam que outros defendem mais a vida que eles. Têm a História como testemunha.


* Por Fina d’Armada

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