terça-feira, 19 de dezembro de 2006

A prisão e o aborto: “Da perversidade das mulheres e da inocência dos homens” *

Vão para casa, meninas, que isto agora, trinta anos depois, é coisa séria demais. O vosso corpo é propriedade pública.

Por isso defensores do sim à despenalização entraram num novo discurso: as cabeças bem pensantes do país dizem que nós, mulheres, temos a culpa. O “folclore” das tee-shirts dizendo “eu abortei”, o dizer “o corpo é meu”, tudo isso teria descredibilizado a discussão. Que afinal deveria ser feita entre os senhores doutores, que isto de mulherio descontrolado já chega. Discussão séria é saúde pública e não direitos de mulheres.

Que me desculpem, mas eu, além de ventre, tenho cabeça, também penso.

O aborto é mau. É uma palavra com todas as conotações negativas. Chega a ser um insulto. Ninguém o quer para si. Quem o faz procura esquecê-lo. Fá-lo com sofrimento, por vezes renunciando a uma criança que até desejaria ter, se pudesse.

Porque se aqui se põe uma questão de escolha, é necessário dizer que a escolha é uma falácia. Oiço tantas vezes “se pudesse, gostava de ter mais crianças”, ou “que lindo uma família grande”. Mas cuidado.

Quer ter filhos? Então não arranja emprego, não progride na sua carreira, vai trabalhar mais por menos remuneração, não tem casas apropriadas, nem no preço, nem no tamanho, não tem creches, não tem tempo para estudar, não pode fazer os horários extraordinários que agora exigem de técnicos licenciados, não tem como dar às suas crianças condições de vida. Se tiver muitas crianças receberá de retorno uma reforma cortada (pouco tempo de trabalho, que criar crianças é recreio, ainda há pouco tempo se dizia “férias por maternidade”). Trabalhar até morrer será o futuro. Os anos passados a assumir o cuidado das crianças serão apelidados de “não activos”. Não serão tidos em conta, tal como o desgaste físico de várias gravidezes e de amamentação, o desgaste psicológico da responsabilidade, das noites sempre interrompidas, o alerta permanente dos cuidados 24 horas por dia.

Aquela história da “escolha antes de engravidar” é uma treta de um homem sem útero e bem estabelecido na vida. Antes de engravidar muitas de nós não têm escolha. É minha experiência, e não sou médica, o conhecimento de um sem número de gravidezes em que as mulheres ou tinham intra-uterinos, ou tomavam a pílula ou usavam preservativos.

Aborto, sim quando não se tem mais nenhuma solução. Nas primeiras 10 semanas, quando a vida humana ainda não o é. Quando as condições de vida das mulheres não o permitem, e a decisão se torna imperativa.

As pessoas dos movimentos “pró-vida” têm boas estratégias e bem estruturadas. Talvez importadas dos Estados Unidos onde usaram terrorismo para tentar acabar com o direito de decidir das mulheres. Centenas de atentados bombistas, assassinatos. Estes assassinatos não descredibilizaram os pró-vida.

Os argumentos dos defensores do embrião têm evoluído: passou-se da condenação de toda a contracepção, e do aborto pois claro, para a chantagem emocional e distorcida da exibição pública de fotografias de fetos, de argumentos sobre o começo de uma vida humana. Agora baralham o debate dizendo que a despenalização em condições especiais é uma liberalização.

Saberão o que é a liberalização? Seria as pessoas fazerem o que querem, onde querem e quando querem. Nada disso está em causa e dizê-lo mostra má fé e mentira construída ou “verdade torcida por velhacos para convencer ingénuos”.

Já nos acostumamos a ouvir, em campanhas para votação, a utilização de argumentos falsos ou a utilização de assunções falsas para chegar às conclusões que convêm.

Estas pessoas partem portanto de princípios que, no melhor dos casos, teriam de ser provados. O primeiro deles é a perversidade das mulheres. O aborto seria assim como ir tomar um copo e todas elas, se isso lhes fosse permitido, recorreriam com prazer a esta prática. Que deixa, obviamente, marcas a nível psíquico, como é o caso de uma gravidez forçada, outra violência com repercussões graves a nível psicológico.

É assim, ignoramos o que convém, utilizamos palavras falsas, assumimos crenças enquanto verdades absolutas. Mas deixem-me contar o que diziam alguns defensores do não à despenalização num programa da RTPN.

- “A minha mãe teve 13 filhos, morreram cinco. Mas os outros, estamos bem.”

- “O que deviam era pendurar essas mulheres no Rossio com uma corda ao pescoço.”

Filhas de Eva (ou de Lucy) a culpa está sempre connosco.


* Por Madalena Barbosa. Este artigo foi publicado no "Público", de 22 de Novembro de 2006.

1 comentário:

lino disse...

Cara Madalela:

Gostei do artigo. Como não sei se conhece, junto a ligação para a melhor análise filosófica que vi até hoje sobre o aborto:

http://www.criticanarede.com/aborto1.html

Há lá muitos mais artigos sobre o assunto.

Eu sou católico, subscrevi a lista do Movimento e publiquei no meu modesto blogue uma posta sobre o assunto. Pensei em enviá-lo para aqui para ser publicado com mais destaque, mas tenho razões para não o assinar com o meu nome. Se achar que tem interesse e pode ser só assinado como lino (e indicação de autor devidamente identificado), deixe mensagem aqui ou lá que eu envi-o por e-mail com todos os meus dados.

Um Bom Natal e um optimo 2007, com uma vitória esmagadora do "sim"