Aborto: Despenalizar não é liberalizar**
A questão que vai ser votada no referendo do próximo dia 11 de Fevereiro é, precisamente, a da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) quando realizada por opção da mulher até às 10 semanas de gestação e em estabelecimento de saúde para tal autorizado.
No fundo, trata-se de alargar o quadro legal existente, que admite a IVG em certas situações (“indicações”). A novidade consiste em que, dentro daquele prazo, não terá a mulher de invocar uma qualquer indicação, bastando-lhe cumprir os procedimentos que a lei vier a prescrever.
Não tem, assim, sentido falar em “liberalização” do aborto, fantasma agitado por alguns partidários do “não”. Como já tem sido observado, “liberalização”, pela negativa, é a situação que se vive actualmente, em que a proibição legal é facilmente contornada pelo recurso ao aborto ilegal clandestino, quase sempre inseguro.
Pelo contrário, o “sim” propõe uma regulação da IVG que respeite simultaneamente a vida intra-uterina e o direito da mulher à maternidade consciente e responsável. Como decidiu, mais uma vez, o Tribunal Constitucional, o reconhecimento do direito de opção da mulher num período inicial da gravidez, a par da posterior proibição da IVG fora das situações previstas nas “indicações”, constitui um compromisso razoável e equilibrado, constitucionalmente válido, entre os direitos da mulher à sua autonomia, à maternidade consciente, e a protecção da vida intra-uterina.
O exercício do direito de opção da mulher, além de temporalmente limitado, ficará ainda submetido certamente a certos procedimentos, como o aconselhamento médico e social e eventualmente a imposição de um curto período de reflexão. Sem sentido, repete-se, é a acusação de o “sim” pretender a “liberalização” do aborto. Ao invés, é a vitória do “sim” que pode reduzir o aborto ilegal clandestino a uma dimensão residual e enquadrar a IVG dentro de regras e procedimentos seguros e responsáveis.
A violação dessas regras e procedimentos deve evidentemente ser punida. O novo quadro legal que resultar do triunfo do “sim” deve ser cumprido e punidos os infractores. Mas isso não significa que a lei deva impor a punição das mulheres que abortem fora das condições legais. A opção pela IVG constitui, a não ser nos casos patológicos, uma decisão muito difícil, tomada após um doloroso conflito interior, e sustentada na constatação da impossibilidade de assumir a maternidade, por razões que podem ser muito diversas, desde motivações íntimas ou sentimentais até razões de ordem económica ou social. A opção pela IVG assenta, na esmagadora maioria dos casos, numa situação de emergência ou necessidade.
Normalmente, quase sempre, essa decisão é tomada num período inicial da gravidez. Mas pode acontecer, por razões também muito diversificadas, que a decisão de interromper a gravidez venha a ser assumida mais tarde, já para além das 10 semanas. Nessa hipótese, e pensando sempre na legislação que resultará da vitória do “sim” no referendo, é evidente que a IVG não seria legal e quem a efectivasse cairia sob a alçada da lei penal. Mas não necessariamente a mulher. Relativamente a ela, a lei, reconhecendo que normalmente aborta numa situação de emergência e necessidade, pode isentá-la de punição.
Em todo o caso, mesmo que não venha a ser essa a opção do legislador, a despenalização proposta pelo referendo sempre constitui uma melhoria significativa relativamente à situação actual, e mesmo em relação à muito propagandeada proposta de tornar obrigatória a suspensão provisória do processo para as mulheres que recorrem à IVG. Na verdade, a suspensão provisória é só aplicada no termo do inquérito criminal, como alternativa à acusação, depois de terem sido realizadas todas as diligências da investigação, como os interrogatórios dos arguidos, entre os quais os das mulheres, a inquirição de testemunhas (que podem ser amigos – ou inimigos -, vizinhos, enfermeiros, empregados de farmácia, etc.), exames médicos e ginecológicos, vigilâncias policiais, etc., envolvendo uma devassa profunda da vida íntima da mulher que abortou, a qual seria apenas poupada à exposição (e humilhação) pública do julgamento.
Acresce que esta “solução” não resolve o fundamental – o aborto clandestino, quase sempre inseguro, como é geralmente reconhecido. A proposta de suspensão provisória do processo é uma proposta piedosa que apenas consegue esconder o problema, não solucioná-lo. A essa proposta, é caso para dizer: “não, obrigada”.
Em síntese, a vitória do “sim” no referendo do dia 11 de Fevereiro apresenta-se como passo decisivo para enfrentar o problema médico, social e humano do aborto clandestino, para resgatar as mulheres de uma ignominiosa perseguição penal e para lhes reconhecer o direito à maternidade consciente e à cidadania responsável e plena.
Afinal, o que se pretende é aproximar a lei portuguesa da generalidade das congéneres dos países da União Europeia (e digo “aproximar” porque em quase todos o prazo de opção é de 12 semanas, e não 10). É apenas isso. Mas é muito para as mulheres portuguesas e para o grau de realização da cidadania no nosso País.
* Jurista/ Mandatário Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo SIM
Este artigo foi publicado no "Sol" de 27/01/2007
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