Esgrimem-se números quanto a julgamentos e condenações. Fala-se da realidade dos números. Os movimentos do "não" concluem até que tudo não passa de uma falsa questão. Enfim, uma "invenção" do "sim" para a campanha do referendo. Quem viveu, porque acompanhou esses julgamentos, nas suas diversas sessões, na Maia (2001/2002), em Aveiro (2003), em Setúbal, em Lisboa e em Coimbra (2004), não pode deixar de sentir uma grande indignação perante tal afirmação. É por este motivo que trago aqui à memória todos esses julgamentos.
MAIA - 2001/ 2002 - Um megajulgamento
O processo durou meses e iniciou-se em 2001. A 18 de Janeiro de 2002 foi lida a sentença. Foram acusadas 43 pessoas, dezassete das quais por terem praticado um aborto. As outras estavam "envolvidas", tinham dado apoio. Uma enfermeira foi condenada a oito anos e meio de prisão. Um assistente social foi condenado por ter sido sensível ao drama de uma daquelas mulheres. Quinze mulheres foram absolvidas porque se remeteram ao silêncio. Bons advogados fizeram o resto. Duas delas acabaram por não resistir à pressão e falaram. Uma, foi condenada a quatro meses de prisão remível a multa. Para outra, o "crime" tinha prescrito. Foram longos meses de sofrimentos, numa tenda gigante a servir de tribunal. Com as vidas expostas. A ouvir, a dissecar, a analisar, o que só a elas dizia respeito, numa enorme invasão da privacidade. Na maioria jovens, elas eram desempregadas, costureiras, recepcionistas, domésticas, cozinheiras, empregadas de balcão. A solidariedade de outras mulheres fez-se sentir durante meses à porta do tribunal.
AVEIRO - Dezembro de 2003 - Desta vez, os familiares são indiciados como "cúmplices"
Arguidos foram 17, dos quais sete mulheres acusadas de terem abortado. Os restantes eram familiares que as tinham acompanhado e os profissionais de saúde. O processo remontava a 1995. Algumas jovens, entretanto já tinham casado e até já tinham filhos. Uma delas estava grávida. As mulheres tinham sido esperadas à porta do consultório do médico pela Polícia Judiciária e levadas compulsivamente ao hospital de Aveiro para exames ginecológicos. Situação aberrante, de prepotência de um poder cego em cumprir uma lei que não faz justiça porque desadequada da realidade. Um procurador do Ministério Público acusou manifestantes e deputados solidários de perturbarem o tribunal: "Varram o lixo em vossa casa e não em porta alheia", afirmou, perante o espanto dos presentes. "A rua não perturba, ajuda a democracia", respondeu-lhe um dos advogados de defesa. Com ar imponente, o procurador lê as escutas telefónicas, consideradas ilegais pela defesa. E não se coíbe: "Havia telefonemas de quem perguntava se doía muito, se tinha anestesia." Exibem-se as dores das mulheres, os exames que lhes foram feitos. Uma outra advogada reage: "É preciso um safanão na justiça; as pessoas não podem ser lançadas desta forma na fogueira; há leis justas e injustas e esta é certamente injusta." A defesa bateu-se por uma absolvição. Mas o Ministério Público recorreu. O resultado foi a condenação dos profissionais de saúde e de uma das mulheres que tinham feito o aborto.
SETÚBAL - Janeiro de 2004 - Polícia Judiciária invade casa de enfermeira e encontra uma jovem deitada na marquesa
Foi assim mesmo. Estilo filme de gangsters. Uma jovem trabalhadora rural nos arredores de Setúbal estava lá, nesse dia e a essa hora. "Apanhada em flagrante", uma violação enorme da privacidade e um sentimento sem limites de indignação e humilhação. O caso remontava a Abril de 1999 e envolvia uma enfermeira e outra jovem acusada de ter abortado dias antes no mesmo local. O processo tinha sido arquivado na fase de instrução devido à ausência de exames médicos que servissem de prova a situações de gravidez interrompida. Contudo, o representante do Ministério Público recorreu dessa decisão para o tribunal da relação de Évora e o processo foi reaberto. A defesa pediu a anulação do julgamento, sustentada na nulidade de provas colhidas através das escutas telefónicas. Mas a juíza não concordou e o julgamento prosseguiu. A absolvição das jovens surgiu após longos meses de desgaste emocional.
LISBOA - Novembro de 2004 - "Quando ainda se é muito menina para estas coisas"
Desempregada, 18 anos, a viver numa barraca com a mãe na Quinta das Lajes (Brandoa). Em desespero, ingeriu Citotec, um fármaco para o estômago com efeitos abortivos. Deu entrada no Hospital Amadora/Sintra com fortes hemorragias. Um enfermeiro denunciou-a à PSP e o agente não se coibiu de invadir os corredores do hospital, para ali mesmo fazer o interrogatório. Quadro surrealista num país europeu. Mas foi assim. Valeu-lhe a sensibilidade de um magistrado do Ministério Público que agiu em sua defesa e pediu a absolvição. De uma juíza, que lhe disse com voz magoada que "ela ainda era muito menina para estas coisas da vida". Foi absolvida após longos meses de averiguações.
COIMBRA - Novembro de 2004 - Um hino ao absurdo
Os processos de julgamento de cinco mulheres acusadas de aborto foram suspensos por decisão do DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal) de Coimbra. Contudo, tal medida só se concretizou mediante duas condições: as mulheres servirem de testemunhas em relação ao processo da parteira, ou seja, testemunharem contra a pessoa a que recorreram em momento de aflição e, ainda, serem sujeitas a regras de conduta e ao pagamento de um montante, neste caso, a uma instituição de protecção às crianças. Considere-se o requinte desta medida: não sendo penalizadas por via de processo judicial, as mulheres acabam por o ser em termos sociais.
Estes foram os julgamentos mediatizados a partir do referendo. Cerca de 30 mulheres julgadas em situações que significaram uma grande violência sobre as suas vidas. Muitos outros julgamentos aconteceram num período anterior, onde o silêncio era a regra. De 1985 a 1995, registaram-se 79 processos por aborto com 65 condenações: 29 casos com prisão, 22 casos com prisão suspensa, 9 com multa e 5 com outras penas. São dados do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça. Mas mais do que "a realidade dos números", falemos da realidade da vida. E essa realidade mostra que a actual lei é injusta e ineficaz . Não impede o aborto, antes empurra as mulheres para o aborto clandestino e para as urgências dos hospitais. E é injusta porque causa sofrimento e humilhação.
É caso para perguntar aos movimentos do "não": qual será o número "aceitável" de julgamentos e condenações para que eles considerem que a actual lei produz humilhação e penalização das mulheres?
Por Manuela Tavares, mandatária do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo SIM
Artigo originalmente publicado no "Público" de 31/01/2007
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