segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Conferência de imprensa: Os contra-sensos do não

Aqui fica o esclarecimento de Vital Moreira, na conferência de imprensa desta tarde.

Os contra-sensos do não

A proposta agora lançada por movimentos e personalidades que lutam contra a despenalização do aborto, no sentido de criar um mecanismo legal que assegure a não punição das mulheres que recorram ao aborto, constitui uma manobra de mistificação e de confusionismo de última hora, que só o receio de perderem o referendo e uma grande dose de cinismo podem justificar.

1º - Esta proposta de alegada “despenalização” (como eles têm o despudor de dizer...) só aumenta a confusão sobre o que desejam os partidários do não, pois há propostas e sugestões de toda a ordem e feitio: há quem pretenda alterar a pena prevista para o aborto, em vez da pena de prisão, tendo uns falado em trabalho comunitário, outros em simples multa; há quem pretenda manter a pena mas dispensar a punição, seja por via de uma “suspensão” do processo penal, seja por via de uma cláusula automática de desculpabilização. E há obviamente quem não concorde com nenhuma destas “cedências” e defenda que o lugar das criminosas que “matam os filhos” é mesmo a prisão. Nessa enorme confusão há porém uma coisa que todos eles mantêm: a condenação do aborto como crime no Código Penal e das mulheres como criminosas.


2º - A ideia de um crime sem punição é totalmente insólita em termos de direito penal, sendo uma verdadeira contradição nos termos. Não faz nenhum sentido que certas condutas sejam qualificadas como crimes e depois garantir aos responsáveis a impunidade. Qualificar uma conduta como crime e prescindir antecipadamente de punir os “criminosos” traduzir-se-ia em subverter a própria razão de ser do direito penal. Só pode haver despenalização com descriminalização, como qualquer dicionário indica.

3º - A isenção de pena também não elimina nem o estigma da condenação penal do aborto nem a humilhação das denúncias e da investigação pelas autoridades judiciárias;


4º - Propor a isenção de pena sem verdadeira despenalização do aborto – como se propõe no referendo -- não altera o principal efeito da penalização, que é o aborto clandestino com todas as suas consequências: falta de aconselhamento na decisão de interromper a gravidez, decisões mais tardias e mais arriscadas, abortos em condições inseguras, lesões da saúde física e psíquica das mulheres, em certos a casos a morte.

5º- Ao defender agora a dispensa de punição (embora sem despenalização), os partidários do não entram em contradição com a principal razão da sua oposição à despenalização, que é a utilização da ameaça de punição penal como meio de dissuasão da decisão de abortar. Na verdade, prescindindo do medo da punição, como é que eles pretendem impedir as mulheres de abortar? Não se pode vir defender a impunidade do aborto e simultaneamente assentar a campanha na ideia de que o não é necessário para “salvar vidas”...

6º- Além de pouco séria, a proposta de última hora adoptada pelos adversários da despenalização é puramente oportunista. Há nove anos o não venceu, mas sem carácter vinculativo, pelo que os partidários do não tiveram todo este tempo para estudar, propor e aprovar a pretensa “terceira via” que agora precipitadamente propõem nas vésperas de novo referendo. Quem pode acreditar na sua sinceridade?

7º - O que está em causa no referendo é dizer sim ou não à despenalização limitada e condicionada do aborto. Como é próprio de todos os referendos, a pergunta é dicotómica. O sim significa revogar a punição penal do aborto, nos limites e nas condições indicadas na pergunta; o não significa o contrário, ou seja, implicitamente manter o que está. Não há lugar para “sim, mas” nem para “não, mas”, nem para uma terceira alternativa. De resto, se admitiam uma solução a meio caminho – dispensar a punição mas manter o crime –, os partidários do não tiveram toda a oportunidade de propor essa versão na formulação da pergunta referendária. Por que é que o não fizeram (antes aprovaram a formulação da pergunta) e só o fazem agora?

8º - A proposta agora lançada significa também uma subversão da lógica do referendo. Só a vitória do sim permite uma verdadeira despenalização do aborto (nos limites e condições indicados); e se o referendo for vinculativo, essa despenalização é obrigatória, sem tergiversações . Uma eventual vitória do “não” não assegura nem permite sequer a semidespenalização agora oportunisticamente defendida pelos partidários do não. Pois, se vencer o não – que significa rejeição da despenalização --, com que legitimidade é que a AR poderia aprovar medidas de isenção de punição contra a maioria dos votantes no referendo, sobretudo se o referendo for vinculativo?

Vital Moreira, Lisboa, 4 Fev. 2007

2 comentários:

Special K disse...

São muitos os contrasensos. A lei actual está ultrapassada é injusta e favorece o aborto clandestino. Não quero mais mulheres julgadas, amordaçadas ou violadas. Por tudo isto e muito mais VOTO SIM!

Vladimiro Jorge Silva disse...

Vou votar sim porque a lei actual é estúpida e criou um país a duas velocidades: o Portugal rico que vai a Espanha abortar e o Portugal pobre que usa os ramos de salsa das abortadeiras das aldeias.
No entanto, penso que a argumentação de Vital Moreira foi infeliz e mais uma vez, deu trunfos ao Não: os movimentos pelo Sim deveriam exigir que o aborto fosse livre até às 10 semanas e descriminalizado a partir daí. Caso contrário, perdem o argumento da "lei que evitará prisões". Existem várias possibilidades legislativas de o fazer sem que ocorram os problemas que VM refere (por exemplo, proibir o aborto a partir das 10 semanas, prevendo apenas penalizações para o pessoal médico e de enfermagem e não para a mulher).
Por outro lado, não se pode criticar os defensores do Não pelo facto destes necessitarem da ameaça penal para impor a sua lei quando a lei do PS prevê exactamente a mesma coisa a partir das 10 semanas!
Ou seja, voto SIM mas tenho pena que os movimentos pelo Sim estejam aparentemente mais preocupados em travar batalhas semânticas com os radicais do Não e tenham deixado passar em claro os erros que ainda existem na lei do PS.