sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

A lei, a tecnologia do medo e o pesadelo revisitado*:

No nosso país, no ano 2001, ocorreu na Maia um julgamento em que se sentaram no banco dos Réus, 17 mulheres acusadas pelo crime de aborto.
As instalações do tribunal da Maia eram pequenas para proceder ao julgamento. Foi então montada uma tenda gigante onde decorreu a audiência. O espectáculo ia começar. Naquele espaço entraram uma a uma as mulheres, sobre as quais pendia a acusação de terem praticado um crime a que correspondia uma pena que podia ir até 3 anos de cadeia. Estas mulheres viram e ouviram num silêncio obscurecido pelo espanto, os detalhes sórdidos das suas vidas mal vividas; viram e ouviram pela voz sacralizada e bem audível do tribunal, naquele cenário pesado, rígido e hostil, publicitar o que queriam esquecer, como se o pesadelo se renovasse e num fôlego brutal se abatesse de repente a estilhaçar sem rodeios a sua intimidade; viram e ouviram o discurso da lei, nas caras sérias dos juízes de becas pretas, que discursavam numa oralidade técnica sobre o que fizeram e não fizeram, sobre o que deveriam ter feito e deixado de fazer, sobre o seu corpo, a sua vida, o seu útero e os seus encontros e desencontros.
Ninguém perguntou - "E o que têm os Meritíssimos com isso?", ninguém disse - "No meu corpo mando eu", ninguém ousou sequer questionar - "onde estão os homens, que nos teriam engravidado?", a vergonha a cobrir grotescamente aquele friso de mulheres pobres, mãos húmidas e gargantas secas, o coração a bater num galope sem freio, o medo a espreitar e em cada gesto a vergar a espinha das palavras que não saíram e a instalar-se num silêncio expectante de animal ferido.

As mulheres da Maia foram na sua quase totalidade absolvidas porque se calaram.

Das duas que optaram por falar, uma foi absolvida, porquanto o Tribunal entendeu ter já ocorrido a prescrição por terem decorrido 5 anos sobre a prática do alegado "crime".

A outra foi condenada.

A Europa a que tanto nos gabamos de pertencer, e que ainda nos olha com indisfarçável altivez, condenou inequívoca e indignadamente o julgamento, a lei, o processo, as condenações que dali saíram e toda esta despudorada situação, que nos envergonha a todos, habitantes que somos do séc. XXI.

Mirou-nos com a curiosidade e a distância com que se olham os parentes pobres, que comparecem nas festas com os fatos a cheirar a naftalina, meio boçais e atrasados na sua forma de ler o mundo.

Podíamos ter aprendido alguma coisa com a dolorosa experiência do julgamento da Maia. Mas pelos vistos, os poderes e os poderosos deste país gostaram do evento. E aí o temos de novo reeditado em Aveiro, onde em 2004 decorreu de igual modo um julgamento em que mais uma vez se sentam no banco dos Réus 7 mulheres acusadas da prática de aborto.

Desta vez porém, foi-se mais longe e aí se sentaram também, maridos, namorados, companheiros, pais e até um motorista de táxi que levou uma das mulheres ao local onde alegadamente teria abortado.

Mais uma vez a polícia utilizou escutas telefónicas, vigiou entradas e saídas de mulheres do local onde supostamente se realizariam os abortos, e pasme-se, terá inclusivamente obrigado algumas das mulheres a realizarem exames ginecológicos.

O afã policial, absolutamente digno da Inquisição, denota com nítida evidência até que ponto o fundamentalismo moral dos defensores da actual lei pode chegar.

Setúbal seguiu-se neste roteiro absurdo; mais três mulheres julgadas em 2004, com a polícia a irromper no consultório da parteira, uma polícia ágil no pesadelo que ensombrou durante meses e anos, o tempo de decurso do julgamento e respectivos adiamentos, o dia a dia das arguidas neste processo-crime.

O grande crime das mulheres da Maia, Aveiro e Setúbal, foi o de não terem dinheiro para se deslocarem a Espanha ou a qualquer outro país da Europa, para aí com dignidade e respeito pela sua intimidade e saúde, praticarem este acto médico, que o aborto é.

Aquando do último referendo, todos aqueles que defendiam a continuação desta lei hipócrita, sussurravam numa falsa cordialidade que em Portugal as mulheres nunca seriam nem julgadas nem penalizadas por terem voluntariamente interrompido a gravidez.

Mentiam e pior do que isso, sabiam que mentiam.

Por isso é fundamental a mobilização para o próximo referendo; é fundamental acertar as contas com a dignidade negada, com o cheiro a medo que se exalava destas mulheres mergulhadas num silêncio doloroso que não escondia contudo o barulhar de uma raiva legítima.

Vivemos em democracia há quase trinta anos. A lei que diz que o aborto é um crime é uma excrescência do fascismo que envergonha e humilha o regime democrático.

Mas não só. Envergonha-nos e humilha-nos a todos. Homens e mulheres. E a quem nada fizer para a mudar.


* Por Alice Brito, Advogada

4 comentários:

pajO disse...

Obrigado por este post, posso fazer copy das tuas palavras para o debate aqui
Isto sim, são factos.

*pajo

www.nervoptico.com/pajo

Unknown disse...

Qual era o tempo de gestação das senhoras quando abortaram?... Esses julgamentos continuarão a existir depois do Referendo minha senhora? Tirou o curso de Direito na Farinha Amparo?...

Isabel disse...

"...viram e ouviram pela voz sacralizada e bem audível do tribunal, naquele cenário pesado, rígido e hostil, publicitar o que queriam esquecer, como se o pesadelo se renovasse..." "pesadelo"?, "o que queriam esquecer"? Devemos então permitir que legalmente muitas mais mulheres continuem a ter esse tipo de pesadelos e a querer esquecer cenas tão dramáticas como o aborto de um filho dentro da sua barriga? É isso?

cidadaniapelosim disse...

Não, o que se quer evitar é que as mulheres continuem a ser devassadas na sua vida privada. Invadir um consultório sem mais nem menos, é claramente, um atentado à sua privacidade, um atentado à sua dignidade e um desrespeito pela sua escolha, uma humilhação. O que se defende é que as mulheres não podem continuar a ser sujeitas a esta humilhação e perseguição. O que queriam esquecer, como pergunta, é claramente esse pesadelo que recriaram no Tribunal, esquecer a humilhação porque passaram. Porque mesmo dentro da actual lei, nem a polícia, nem ninguém pode invadir uma consulta e levar uma mulher à força para testes médicos, para provar que estava a fazer um aborto. Não o pode fazer sem um mandato, não o pode fazer sem um advogado. Se isso não é um humilhação e violação dos seus direitos de cidadania, então não sei o que será...
O que está em causa no próximo referendo de 11 de Fevereiro é se queremos que as mulheres continuem a ser forçadas a recorrer ao aborto clandestino, feito em insegurança, com riscos e consequências sérias para a saúde da mulher. Se o aborto fosse legal “o pesadelo” destas mulheres descritas neste texto, nunca teria ocorrido.
IS