Quanto custa uma investigação, nos processos em que são arguidas mulheres por alegadamente terem abortado? Quanto custa pôr a funcionar toda a máquina judicial, ritual e áspera, planificada para a indiferença? Quanto custa um julgamento, com toda a sua dramaturgia ensimesmada e hostil? Quanto custa?
No processo da Maia, 43 pessoas no banco dos Réus, 17 das quais mulheres acusadas de aborto.
A exiguidade do edifício não continha tanta gente. O tribunal funcionou numa tenda precária e gigantesca, montada expressamente, qual congénere circense, para a tristíssima exposição do lado mais negro e calado das vidas de cada uma. Quanto custou a montagem e aluguer da tenda? Quanto custou a audição das dezenas de testemunhas, de peritos, a desfiarem hora após hora o que sabiam e o que deixavam de saber? Quanto custaram as buscas, as horas que cada polícia, cada magistrado, cada advogado, cada funcionário judicial perdeu com o processo?
Quantos julgamentos foram adiados, quantos processos ficaram empoleirados nas prateleiras, quantas outras investigações necessárias, rigorosas e urgentes ficaram por fazer?
No processo de Aveiro, quanto custou a casa que a polícia judiciária arrendou frente ao consultório do médico, para vigiar as entradas e as saídas? Quanto custaram as escutas telefónicas, os exames ginecológicos coercivos realizados às mulheres, e de novo o tempo improdutivo de todas as pessoas envolvidas?
Quanto custa tratar das mulheres vítimas de aborto clandestino que aparecem nos hospitais a esvaírem-se em sangue, colonizadas por dores, com rupturas no colo do útero e às vezes do próprio útero, a histerectomia a adivinhar-se como solução, e a infecção a espreitar cada minuto que se verte sobre a clandestinidade decretada por uma lei fossilizada?
Quanto custa a dignidade devassada? Quanto custa a humilhação?
Quanto custa o sofrimento físico e moral da publicitação dos sobressaltos da vida?
Quanto custa o descrédito da justiça face à sociedade que olha indignada cada sentença, cada acórdão proferido, que reduz as mulheres ao estatuto de fêmeas e encara a maternidade e a paternidade como becos sem saída, asfixiantes e pesados?
Quanto custa ver a justiça a posar para a comunidade um retrato de intolerância e a escrever nas páginas da história judiciária, um dos seus episódios mais tristes e brutais, em que a vida de cada mulher é reduzida a parágrafos sucessivos e intrusivos, numa linguagem legal e cifrada, código de casta, a cultivar um desamor técnico?
Quanto custa a erosão do poder judicial, garante máximo dos cidadãos num Estado de Direito?
Quanto custa tudo isto?
Que se façam bem as contas, e no balanço contabilístico da lei que vamos referendar, se pondere o superavit de amargura, de violência e de ansiedade, pago com os nossos impostos.
* Por Alice Brito, advogada.
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