terça-feira, 16 de janeiro de 2007

A humilhação não obedece a cotas numéricas*

Os opositores da despenalização da interrupção voluntária da gravidez raramente se centram no que está em causa no próximo referendo: a mudança da actual lei sobre aborto, lei essa que prevê uma pena de prisão até 3 anos. Preferem desvirtuar o debate em questões sobre o que é a vida, sobre o que é o ser humano, sobre os impostos, sobre o juramento de Hipócrates, questões que podem decorrer quando se fala de aborto, mas que não são o cerne da questão. O que se vai referendar no dia 11 de Fevereiro é saber se os/as portuguesas concordam que uma mulher que decida interromper uma gravidez até às 10 semanas, deve ou não, ser criminalizada.

Por parte do lado do Não, são poucos os que se atrevem a entrar directamente nesse campo, e desviam a conversa, falando em bateres de coração, falando em bebés, mostrando ecografias, e as mulheres, desaparecem dos seus discursos, passando a ser um elemento secundário. Mesmo assim, a minoria que se aventura a falar sobre o que está aqui em causa, ou seja, os julgamentos e a criminalização das mulheres, preferem fazê-lo através de um atitude despreocupada, num quase encolher de ombros, como se dissessem “- Ai, é a vida”. Curiosamente são eles mesmos que apelidam os/as defensores/as pelo SIM como os seres que são contra a vida.

Na edição de ontem do jornal Público, Filipe Anacoreta do grupo Independentes pelo Não, afirmava que a “humilhação das mulheres é uma falsa questão”. E isto porquê? Os argumentos que o SIM recorre para defender a despenalização da IVG - a humilhação e penas de prisão das mulheres - “contrastam com a realidade dos números”. E que números são estes? Segundo dados do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, um organismo do Ministério da Justiça:
Entre 97 e 2005, dezassete mulheres foram condenadas por crimes contra a vida-intra uterina (aborto e aborto agravado), nove das quais viram a sua pena de prisão suspensa ou substituída por multa.
Também é referido que entre os mesmos anos, trinta e sete mulheres foram constituídas arguidas.

Não deixa de ser curioso que este defensor do NÃO se apoie neste números para desvalorizar a questão. Mas qual, segundo a sua perspectiva, seria o número aceitável para já se poder falar de “humilhação” e “penalização” das mulheres que recorrem ao aborto clandestino? O simples facto de Portugal ser o único país da Europa que levou mulheres a tribunal não é suficiente para perceber que a actual situação não faz qualquer sentido? Ou é preciso explicar que os julgamentos e as penas são a fase final de todo um processo judicial, que envolve uma série de etapas? Será que à semelhança dos movimentos pelo Não que marcham pela vida, temos que organizar uma caminhada a explicar o B-A-B de um processo judicial? Mas alguém, no seu perfeito juízo, acha que passar por um processo de investigação criminal é uma coisa leve?

Vamos então a casos concretos. Porque, infelizmente, a história da nossa democracia está manchada por vários casos de julgamento por aborto.
Não é por acaso que esta Assembleia pelo Sim – este primeiro Encontro Sim – ocorre em Aveiro.

Estávamos em 2003, dois anos depois do famoso julgamento da Maia, e de novo, Portugal, passa a estar na ordem do dia, mais uma vez a mostrar que está na cauda da Europa. E pelo o pior dos motivos: dezassete arguidos/as no banco dos réus. Destes, sete são mulheres acusadas de terem abortado. O processo remontava a 1995. As mulheres foram esperadas à porta do consultório médico, pela polícia judiciária; foram levadas de imediato para o hospital de Aveiro, a fim de fazerem exames ginecológicos. Sem que tivesse havido despacho do Ministério Público. Sem terem direito a um advogado. Sem que os seus direitos de cidadania fossem respeitados.

Durante as várias sessões, estas mulheres foram enxovalhadas com questões que passaram o limite do razoável: “- se doeu muito”, “como é que estava sentada”, que exames fizeram.

As histórias dos julgamentos por aborto não diferem muito, o que pode divergir é o modo como as mulheres foram parar à barra do Tribunal. Em muitos dos casos, foram esperadas pela polícia, à saída das clínicas, ou, como no julgamento de Lisboa de 2004, houve uma denúncia por parte de um enfermeiro que assistiu uma jovem que deu entrada no hospital, com fortes hemorragias, por ter tomado citotec. Todos os julgamentos decorreram num clima de agitação e polémica que sempre transcenderam as paredes dos tribunais. Cada vez que há um julgamento por aborto, as vidas dessas mulheres são despejadas nas páginas dos jornais; da opinião pública às conversas de café discute-se as razões que levaram uma mulher a abortar.

Para os movimentos do NÃO os casos que chegam a julgamentos são irrelevantes. Porque, dizem eles, “contrasta com a realidade dos números”. Números que avaliam a partir das penas de prisão. As penas suspensas, as multas, o trabalho cívico, ser alvo de investigação criminal e judicial durante anos e anos, não tem qualquer importância, é uma coisa como outra qualquer. O respeito pelas mulheres que decidem abortar também é secundário. Porque não lhes passa pela cabeça que uma mulher possa tê-lo feito de acordo com a sua consciência, que ter recorrido ao aborto foi uma escolha responsável, independentemente dos riscos que possam advir. Mais, fazem pouco de todas as mulheres que recorreram ao aborto clandestino e que tiveram que enfrentar a justiça. Isso não é defender a vida, é ser contra todas as opções da vida das mulheres. E nem que até hoje nenhuma mulher tivesse sido julgada por aborto, continuaria a fazer todo o sentido defendermos a alteração desta lei, porque uma lei penal ineficaz e injusta é uma lei constitucionalmente ilegítima. Uma lei que despenalize o aborto não vai obrigar nenhuma mulher a abortar, mas vai permitir que a maternidade e a paternidade responsáveis passem a ser uma escolha. E isso, neste momento, não existe.

* Por Inês Sacchetti, mandatária Cidadania e Responsabilidade pelo Sim
Texto apresentado na Assembleia pelo Sim, em Aveiro, no dia 14 de Janeiro de 2006.

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