quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Artigo de opinião de Agostinho Domingues*

Concordo com a despenalização

A opinião amplamente maioritária dos cidadãos portugueses vai no sentido de que as mulheres que interrompem voluntariamente uma gravidez em determinadas circunstâncias não devem ser punidas. É esse um sentimento generalizado de compreensão e de tolerância para um acto privado, normalmente praticado em grande sofrimento psicológico. A mesma atitude compreensiva manifesta a maioria dos juízes, quando chamados a julgar as arguidas nos respectivos processos judiciais e postos perante o dilema de fazer cumprir a lei, aplicando uma pena que pode ser a cadeia, ou de passar por cima da letra da lei, mandando em paz a desgraçada apanhada nas malhas da justiça. Raros têm sido por isso os casos que, levados a tribunal, resultaram em sentenças condenatórias. Desta forma deixa-se ao arbítrio do poder judicial aquilo que pertence ao poder legislativo. Mas, mesmo contando com a benevolência demonstrada pelos juízes portugueses, uma mulher que voluntariamente abortou está sempre sujeita a todo o vexame público que caracteriza um julgamento. Não lhe bastou o calvário de uma decisão dolorosa: haverá ainda que a sujeitar a um processo humilhante!...

Importa, pois, conformar a lei com os sentimentos de bondade e de compreensão do povo português. Como se faz isso? Não se faz com uma lei que aprove o aborto, mas sim com uma lei que diga que a interrupção de uma gravidez em determinadas circunstâncias, devidamente justificadas, não fica sujeita a qualquer punição. Eis a definição de "despenalização", nos termos do dicionário da Academia de Ciências de Lisboa: ´eliminação ou perda do carácter de ilicitude, de ilegalidade, susceptível de ser punido ou penalizado pela lei`. Votar sim no próximo referendo não é votar no aborto, mas abster-se de considerar criminosas as mulheres que abortem em determinadas circunstâncias.

Precisamente porque o recurso ao aborto é uma situação extrema, todos os homens e mulheres de boa vontade se devem empenhar na formação sexual e na divulgação e aconselhamento dos métodos científicos anticonceptivos de forma a evitar uma gravidez indesejada ou não programada. A sexualidade é uma componente essencial da personalidade humana e fonte de realização pessoal e social. Tão grave é ignorá-la como banalizá-la. Ignoram-na os que fazem do sexo tabu; banalizam-na os que apregoam o sexo como prazer pelo prazer, em vez de lhe conferir a verdadeira dignidade de felicidade partilhada e responsável. Repito: votar sim no aborto é apenas impedir de sujeitar aos tribunais como criminosas mulheres que vierem a abortar nos termos previstos em lei a elaborar pelo Parlamento, presumivelmente sob proposta do Governo.

Apela-se a todos os líderes de opinião – entidades colectivas ou individuais - no sentido de contribuírem para a educação e informação sexual do povo português. Não é matéria que deva estar reservada à formação escolar, por mais imprescindível que esta se apresente. Só assim se diminuirá o recurso ao aborto, sempre traumatizante para a mulher. Lamentavelmente, a Igreja Católica, com tão larga implantação na comunidade nacional, não consegue desempenhar nesse domínio o papel que lhe advém da mensagem evangélica. É que está presa a preconceitos obsoletos como os expressos nas encíclicas papais de Pio XI (a "Casti Connubii") e de Paulo VI (a "Humanae Vitae"), nunca oficialmente desmentidas pelos Pontífices posteriores, reservando para a esfera do aconselhamento pessoal ou de confessionário o consentimento no uso de métodos anticonceptivos. Ao votar sim no referendo a sociedade laica estará ainda a prestar um bom contributo à Igreja Católica portuguesa. Explico porquê: a Igreja Católica, na sua sabedoria bimilenar, sabe estar atenta aos sinais dos tempos, colhendo lição dos ensinamentos. Vai, pois, finalmente compreender que é ridículo pronunciar-se contra o uso de anticonceptivos como a pílula ou o preservativo, inclusive em actos de amor responsável. E isso é mais de meio caminho andado para evitar a prática abortiva.

Os eleitores do próximo referendo são maioritariamente cristãos, uns com prática de culto, outros, pelo menos influenciados ou orientados por princípios evangélicos. Não vale invocar o nome de Deus em vão numa matéria que, como disse o cardeal patriarca D. José Policarpo, não é do foro religioso. Mas é natural que o voto de muitos cristãos esteja condicionado por razões de natureza religiosa. Dizer o contrário significa lançar poeira para os olhos tentando impedir a evidência. Não fujo, portanto, à abordagem do problema.

Antes de mais, considero que um cristão, no âmbito do preceito evangélico de "dar a César (leia-se: sociedade civil) o que é de César", tem obrigação de cumprir os seus deveres cívicos, entre os quais sobressai o dever de votar. Mas até compreendo que, em matérias tão complexas como esta, muitos cumpram esse dever votando em branco. Por minha parte, declaro antecipadamente o meu voto favorável à despenalização. Avanço os meus fundamentos.

Jesus de Nazaré foi manifestamente revolucionário também na relação com as mulheres. Na mentalidade do seu tempo, a mulher quase não tinha direitos, subordinada como estava ao homem. Tomando Jesus claro partido pelos oprimidos e desfavorecidos de poder, não podia deixar de acolher as mulheres com especial carinho. São bem conhecidos os casos de Maria Madalena ou de Magdala, das irmãs Marta e Maria, da Cananeia e das mulheres designadas Mulher Adúltera e Samaritana, entre outras. O comportamento de Jesus para com as duas últimas demonstra bem o seu coração compreensivo e compassivo. No episódio da Adúltera, Jesus de Nazaré é colocado perante um crime, apanhado em flagrante, de adultério feminino, punível com apedrejamento pela Lei de Moisés, à qual ele, como judeu, também estava vinculado. A sua bondade leva-o a "despenalizar" o delito cometido, enfrentando assim aquele grupo de Fariseus defensores do rigor da lei. Mas foi mais longe, dizendo-lhes que quem estivesse isento de culpa atirasse a primeira pedra àquela mulher. Curiosamente, retiraram-se um a um, desarmados perante essa atitude de Jesus, para eles totalmente inesperada (Ev. de S. João, cap. VIII). Quanto à Samaritana, conjugalmente a viver com um homem em união de facto, mesmo sendo já o seu quinto companheiro, nada disso impede a simpatia de Jesus por esta mulher da Samaria, de mais a mais pertencente a um povo considerado herege pelos Judeus (Idem, cap. IV).

A terminar, quero deixar expressa a minha concordância com o respeito integral pelo resultado da votação, mesmo que a participação dos eleitores seja inferior a metade. Só ficarei triste como português, se num assunto de tanta relevância humana não houver uma clara maioria a exercer o seu dever de participação no acto eleitoral, qualquer que seja o sentido de voto.

- Agostinho Domingues


*Artigo publicado no jornal bracarense Correio do Minho, em 17 de Janeiro de 2007

Sem comentários: