Há muito tempo que não conversava com aquele amigo de que os meus pais gostavam tanto que o escolheram para me proteger, caso se finassem. Mas no fim daquele almoço de reencontro, na hora de despedida, ouço: “Gostei de te ver. Mas agora não estou do teu lado. Porque, sabes, eu sou pela vida”. Como quem diz: tu, carrasca, és pela morte. Não foi tanto a frase, em particular vinda de alguém que me viu nascer e crescer, o que me chocou. Foi o tom. O tom de ufana superioridade moral: tu, desmiolada selvagem; eu, sábio civilizado.
Não são a vida e a morte que separa o Sim e o Não no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez. Seja qual for a decisão do povo português. O aborto – que foi, durante séculos, até ao advento dos métodos de planeamento familiar, uma prática generalizada – vai continuar a existir. Todos desejaríamos que ele acabasse, evidentemente. Mulher nenhuma, nem mesmo as “levianas”de que falava há uns dias na TVI, o dr. Gentil Martins (por que será que os homens, por muito que se esforcem por isso, nunca são considerados “levianos”?) aborta por gosto. Mulher nenhuma, por muito que tenha sido educada para o auto-sacrifício e o masoquismo, prefere fazer um aborto a preveni-lo. Mas às vezes os métodos falham. Ou falha a informação que daria acesso aos métodos. Falham muitas coisas ao mesmo tempo. Por muito que não o queiramos, as mulheres abortam. A diferença está em que, se o Sim ganhar, as mulheres de menores recursos deixarão de ser humilhadas nos bancos dos réus dos tribunais. O Não argumenta que não há mulheres efectivamente presas – mas não deixa de haver mulheres com cadastro criminal. Acresce que, num Estado Democrático, as leis são para cumprir – se ignorarmos o Código Penal quando manda prender mulheres que pratiquem o aborto, como podemos respeitar o mesmo Código nos seus restantes postulados? Alguns adeptos do Não advogam a “suspensão” da aplicação da lei - o que significaria um desrespeito simultâneo à legalidade e às mulheres e homens do nosso país. Pois por que razão haveriam as mulheres de merecer um especial tratamento legal? Porque haveriam de ser consideradas inimputáveis perante a lei?
Não são as convicções de cada um o que está em causa, nem sequer o seu exemplo de vida. Conheço mulheres que votam Não e já abortaram, conheço mulheres que votam Sim e nunca abortaram. O que está em causa são os valores que construíram a nossa civilização dos Direitos Humanos – da pregação de Cristo em prol da misericórdia e do perdão (“Não julgueis e não sereis julgado”; “quem não tiver pecados que lance a primeira pedra”) à divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” instituída pela Revolução Francesa. São estes princípios basilares que no referendo se joga, do lado do Sim, contra o radicalismo fundamentalista de um Não que quer impor aos outros o seu ponto de vista – ainda por cima, no caso vertente, um ponto de vista completamente imune à realidade.
A realidade é que, em Portugal, as mulheres ainda morrem em consequência de aborto clandestino. Há dois anos morreu uma menina de 14 anos, com uma overdose de comprimidos abortivos. Outras tornam-se definitivamente estéreis. A situação actual, de liberalização selvagem do aborto, causa danos gravíssimos na saúde reprodutiva das mulheres e das famílias, e uma insustentável situação de corrupção económica.
Despenalizar o aborto até às 10 semanas é aproximar as mulheres do sistema de saúde, dar-lhes o direito à informação e ao aconselhamento especializados, proporcionar-lhes o acesso ao planeamento familiar. Profissionais de saúde defensores do Não argumentam que o nosso sistema de saúde “não está preparado” para responder à despenalização. É uma tradição portuguesa, esta de começarmos por decretar a inutilidade do empenhamento na mudança; com um “vai ficar tudo na mesma” enterramos à nascença qualquer tentativa de investigação judicial, reforma social ou cultural. É curioso que este derrotismo se aplica sempre e sobretudo às mudanças que dizem respeito aos mais desamparados – porque ninguém duvida de que a nossa selecção de futebol possa ser maior, nem que os célebres e ricos possam incrementar os seus proventos e famas. No entanto, apesar do cepticismo em que nos viciámos, algumas coisas vão mudando - e outras podem mudar, se o quisermos. Aquilo que se nos pergunta agora, concretamente, é se queremos ver as portuguesas criminalizadas por prática de aborto. Só isso.
Questão delicada – repetem vozes variadas. Sucedem-se os apelos à contenção e à elevação. Porque é que todos os temas se podem debater sonoramente, e este, de repente, é tão tão tão delicado que parece não haver forma de confrontar claramente as opiniões em jogo? Será que por se tratar de uma questão de consciência? De acordo, questões de consciência não se referendam. Mas quem nos meteu neste imbróglio foram dois delicadíssimos senhores: António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Foram eles quem, fazendo gato sapato de uma lei aprovada, trouxeram a nossa consciência para leilão público. Despenalizar é precisamente respeitar a consciência e cada um – o assunto delicado é só esse.
* por Inês Pedrosa.
Artigo originalmente publicado na revista "Única", do "Expresso" de 3/02/2007
domingo, 4 de fevereiro de 2007
Artigo de opinião: "O assunto delicado" *
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