quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Artigo de opinião: "Os filhos do Código Penal" *

Num dos recentes cartazes da campanha dos opositores à despenalização do aborto proclama-se que o voto contra "ainda vai a tempo de salvar muitas vidas". Mas a ideia de que a ameaça de repressão penal pode ser um meio eficaz de impedir abortos e um instrumento legítimo para obrigar mulheres a levar por diante gravidezes indesejadas e a gerar filhos não queridos constitui um testemunho da desumana e intolerante sujeição ao dogma e ao preconceito por parte dos defensores da situação vigente.

Em primeiro lugar, todos os indicadores sociológicos existentes mostram que a condenação penal do aborto não constitui um antídoto adequado na luta contra o aborto e nenhuma demonstração convincente comprova que a despenalização desencadeia uma onda duradoura de aumento dos abortos nos países onde aquela ocorreu. Se há alguma coisa acerca da qual existe um amplo consenso sociológico é que, seja lícita ou ilícita, a decisão de abortar nunca é tomada de ânimo leve, sendo sempre uma situação de grande compulsão psicológica. Não é a ameaça de punição penal que pode servir de dissuasor dessa decisão, nem é a despenalização que a pode banalizar.

Por um lado, os dados disponíveis respeitantes à situação portuguesa mostram que, apesar da proibição penal, se praticam muitos milhares de abortos todos os anos, o que aliás condiz com as informações respeitantes a outros países onde vigora idêntica proibição. Por outro lado, mesmo admitindo que num primeiro momento a despenalização possa criar algum aumento do número de abortos - para além da simples revelação de números anteriormente desconhecidos relativamente aos abortos clandestinos -, a experiência comparada aponta vários casos (Holanda, Alemanha, por exemplo) de diminuição da taxa de aborto no médio e no longo prazo, fruto de maior empenhamento nas políticas de educação sexual e de contracepção e de planeamento familiar, que a despenalização normalmente arrasta consigo.

Em segundo lugar, ainda que fosse de admitir algum aumento da taxa de abortos em consequência da despenalização, pelo menos numa primeira fase, sempre haveria que saber se essa consequência negativa não é amplamente compensada pelo fim dos consabidos malefícios do aborto clandestino, em termos de risco para a saúde física e psíquica das mulheres. Se houvesse algumas dúvidas, os dados oficiais divulgados entre nós sobre o número de mulheres que tiverem de recorrer ao serviços oficiais de saúde para completar abortos mal sucedidos ou para tratar as suas sequelas - incluindo vários casos fatais - são mais do que suficientes para mostrar que os possíveis efeitos negativos da despenalização em termos de eventual aumento de abortos podem e devem ser sopesados com os ganhos em termos de saúde física e psíquica dos muitos milhares de mulheres que, por causa da condenação penal e por razões de ignorância ou de falta de recursos económicos, têm de realizar o aborto sem as adequadas condições de segurança.

Em terceiro lugar, ao contrário do que pretendem os adversários da despenalização, esta não só não impede o uso do aconselhamento e da persuasão médica e psicológica para evitar abortos, como até favorece essa possibilidade. É evidente que, no actual estado de clandestinidade do aborto, a decisão de abortar é quase sempre solitária e desamparada, sem lugar para uma ponderação informada e apoiada. Diversamente, a despenalização e legalização proporcionarão condições para um aconselhamento prévio, que a lei deve, aliás, tornar obrigatório, como parece ser consenso dos defensores da despenalização. Por isso, quando certos movimentos do "não" invocam o número de casos de sucesso na persuasão de mulheres a desistirem de uma intenção de aborto, há que dizer que eles teriam muito melhores condições de êxito na sua missão com a despenalização acompanhada de aconselhamento prévio. Só não poderiam contabilizar a seu favor os casos de desistência por efeito da ameaça penal...

Por último (mas talvez o mais importante), mesmo que se concedesse, a benefício de argumentação, que há mulheres que renunciam a um aborto por causa do receio das consequências penais, a questão que se coloca é a de saber se isso pode justificar a manutenção de uma gravidez indesejada e a gestação de um filho não querido. Entre os direitos mais elementares das pessoas há-de contar-se o direito a uma maternidade e a uma paternidade consciente e responsável. Com que direito, então, é que a sociedade (ou um parte dela), em nome de um certo paradigma moral pode impor a outrem, vítima de uma gravidez por acidente ou por inadvertência ou fruto de uma relação afectiva entretanto gorada, a manutenção dessa gravidez ocasional e a gestação de um filho indesejado? Os filhos devem ser fruto de uma relação afectiva entre os progenitores e de uma decisão de maternidade livre e responsável, e não consequência forçada de uma gravidez por acidente e do Código Penal combinados.

A desumana insensibilidade com que os adversários da despenalização convertem o direito à maternidade e à paternidade numa obrigação absoluta - incluindo em caso de gravidez indesejada ou, mesmo, insustentável, em termos afectivos, psicológicos, familiares, económicos, sociais, etc. - revela uma dose de intolerância e de incompreensão que só o dogmatismo e o fundamentalismo religioso ou moral podem justificar. É certamente louvável que muita gente se sinta impelida, pelas suas crenças ou convicções, a tudo sacrificar para manter uma gravidez indesejada e a gerar um filho que se não quis. Pode mesmo aceitar-se que essas pessoas desejem transformar as suas crenças e convicções em norma moral geral para todos os outros e usem de todo o proselitismo nesse sentido. O que não é aceitável é que pretendam impor essa norma moral como norma oficial universal, ainda por cima imposta por via penal, sob ameaça de prisão.

Despenalizar o aborto não impede nenhuma mulher de preservar a outrance uma gravidez indesejada, porque a isso se sente compelida por razões religiosas ou filosóficas. Apenas impede que esse sacrifício seja imposto à força a outras mulheres que não compartilhem desse constrangimento religioso ou moral. Do que se trata é de saber se as primeiras podem impor às segundas as suas convicções morais e religiosas, não com a sua capacidade de persuasão, mas sim com a ajuda do Código Penal e a cominação de prisão. É essa a diferença entre o "sim" e o "não".

* Por Vital Moreira
Artigo originalmente publicado no Público de 6/02/2007

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