quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Revista de Imprensa: proíbido esquecer Julgamento da Maia

A edição do Público de hoje, não esqueceu os 5 anos da sentença do Julgamento da Maia.
Aqui ficam os recortes.

POL nº 6140 | Quinta, 18 de Janeiro de 2007

Julgamento da Maia recuperou discussão sobre a despenalização do aborto
O Tribunal da Maia deu como provada a maior parte das acusações imputadas à enfermeira-parteira. Uma das 17 mulheres que ali responderam
pelo crime de aborto foi condenada. Todas as que optaram pelo silêncio foram absolvidas. Ainda agora, poucas aceitam falar. Duas das 17 mulheres e um assistente social condenado neste julgamento contaram, pela primeira vez, as suas histórias pessoais. Por Ana Cristina Pereira

No banco dos réus - transferido para um pavilhão do Complexo Desportivo da Maia -, sentaram-se 43 arguidos. Entre eles, 17 mulheres acusadas de interromper a gravidez à margem da lei. O manto de silêncio sufocava grande parte delas. Só duas o romperam. Uma beneficiou do facto de o crime estar prescrito (abortara há mais de cinco anos), a outra foi condenada a uma simbólica pena de quatro meses de prisão, substituídos por uma multa de 120 euros.
A protagonista do mediático processo, cuja sentença foi lida há precisamente cinco anos, era uma enfermeira-parteira. Sobre ela pendia a acusação de gerir, entre 1995 e 2000, uma "clínica" de aborto nas traseiras da sua residência (na Maia) e de montar uma rede de angariação de clientes (formada por médicos, ajudantes de farmácia, enfermeiros, taxistas, um assistente social). A técnica também era acusada de subtrair do seu local de trabalho, o Hospital de São João, no Porto, material cirúrgico, especialidades farmacêuticas (entre os quais se encontravam produtos considerados estupefacientes) e vinhetas de médicos para passar receitas.
Na génese dos autos estava uma carta anónima remetida à direcção do São João. Durante meses, a Polícia Judiciária vigiou a casa, registou entradas e saídas. Nas buscas, encontrou agendas, que se revelaram fundamentais, nas quais a enfermeira "mencionava os "clientes", com indicação ou não do nome, o valor [...], o nome da pessoa que lhe enviara o cliente e o respectivo desconto ou garantia", lê-se no acórdão.
Os nomes das 17 mulheres, oriundas de degradados bairros do Porto e de diversas localidades nortenhas, estavam lá. Não eram as únicas. Havia "inúmeros clientes nas agendas cujo tratamento marcado tinha preço médio de 75 contos em 1997, 80 contos em 1998, 85 contos em 1999 e cerca de 90 contos em 2000. Ora, anotações deste tipo existem cerca de 500 em 1997, 510 em 1998, 500 em 1999, 100 em Janeiro e Fevereiro de 2000", indica o acórdão. O tribunal "convenceu-se" de que correspondiam a abortos praticados pela enfermeira.
O processo ressuscitou um debate que se diria ter adormecido no pós-referendo de Julho de 1998, no qual 51,9 por cento dos votantes rejeitaram a despenalização do aborto, a pedido, até às dez semanas (68 por cento de abstenção).
Activistas da despenalização desdobraram-se em piquetes. A certa altura, duas representantes das Mulheres em Acção (criada com o objectivo de "lutar contra as leis que ofendam os direitos da mulher, da criança e da família") decidiram deslocar-se até à Maia, numa tentativa de aproximação das 17 mulheres. Uns e outros a sustentar que aquelas mulheres precisavam de apoio, não de condenação.

Uma ecografia e um "recibo" de 85 contos
O Ministério Público propôs a sua condenação, embora admitisse absolvição, se os juízes entendessem que existira "conflito de deveres", o que retira liberdade de opção e "exclui ilicitude". Experimentavam, na sua maioria, grave carência económica. Tanto que algumas tinham deixado objectos de ouro como garantia, como a arguida que abortara com seis semanas de gestação e cujo crime já persevera.
A única condenada por abortar foi uma rapariga, agora com 29 anos, "pobre, doente, carenciada de cuidados médicos regulares". Quando o fez, com um período de gestação não apurado, "estava desempregada, separada do companheiro", que, segundo testemunhou uma vizinha, "lhe batia e jogava". E tinha a seu cargo uma filha de três anos com problemas respiratórios. O tribunal considerou tal contexto atenuante. Reconheceu "grande coragem" à jovem por confessar os factos e admitiu que "a exposição pública da sua vida privada lhe causou grande sofrimento".
O que a fez romper o silêncio? Não era só a agenda que a incriminava. Havia uma ecografia (feita no Hospital de Santo António) e um "recibo" no montante que pagara (85 contos). "Se calhar, se me tivesse calado, ficava na mesma situação das outras", balbuciou à saída do improvisado tribunal, no dia da sentença.
Condenada por aborto agravado, falsificação de documentos, peculato e tráfico agravado de estupefacientes, a enfermeira foi sentenciada a oito anos e meio de prisão e a pagar uma indemnização de 34 mil euros ao Estado. Seis dos acusados de angariar clientes foram condenados por cumplicidade no crime de aborto agravado a penas de prisão entre cinco meses e um mês e meio, substituíveis por multas que oscilavam entre 1122 e os 224 euros. Cinco haveriam de recorrer à Relação e de ali obter absolvição. Maria do Céu seguiu, sem sucesso, até ao Supremo. Jorge Sampaio, enquanto Presidente da República, acabou por lhe indultar a pena.

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